Crônica classificada em 1o lugar no 2o Concurso de Crônicas da AEA-PR
Acordei naquele dia com o canto dos sabiás. Aquela algazarra que se iniciava nas madrugadas do mês de Setembro, e que muitas vezes me irritava, dessa vez tinha um sabor especial. Sorri. Senti uma felicidade profunda. Pulei da cama e me arrumei para o dia corrido que vinha pela frente. Almoço com a família, lanche da tarde com as amigas, jantar com o meu amor. Depois de tantos meses de solidão, convivendo apenas com a saudade, estar perto de cada um deles era um momento muito esperado. Sentia uma vontade enorme de retomar a minha vida.
Na saída para o supermercado, me deparei com o pneu do meu carro furado. E aquilo que para mim seria uma tragédia em outros tempos, me fez rir. De repente tudo havia mudado de perspectiva. Bem, na verdade não foi tão de repente assim que tudo aconteceu. Foram meses de reflexão.
O bom de morar em condomínio é que sempre aparece um vizinho gentil para oferecer ajuda. Enquanto o pneu era trocado, outro vizinho passou na calçada em frente à minha casa. Olhei para ele com compaixão. Ele, com quem eu havia discutido tantas vezes durante aqueles tempos difíceis, agora já não despertava mais a minha raiva. Nossas discussões giravam sempre em torno do uso da máscara nas áreas comuns do condomínio. Ele se negava a usá-la, dizia que era bobagem e que ninguém podia obrigá-lo. Mas a vida tem seus caminhos… sua esposa havia perdido a batalha contra o vírus há algumas semanas. Nossos olhares se cruzaram e eu sorri.
As crianças brincavam no parquinho do condomínio. Era mais uma algazarra de outrora que antes me irritava, e que agora me alegrava por mostrar que a vida havia voltado ao normal.
No caminho para o supermercado observei o semblante das pessoas nas ruas. Era um misto de alívio e esperança. Sorrisos, abraços, gentilezas. Uma atmosfera de felicidade pairava no ar.
Sempre gostei de cozinhar, mas preparar aquele almoço foi muito especial. Saboreei cada minuto. Ouvindo bossa nova e cantando, cuidei de cada detalhe com muito carinho…a toalha de mesa, a louça, a dobra dos guardanapos, a escolha do vinho. Mal podia esperar para estarmos todos reunidos. Que coisa boa poder abraçá-las e dizer pessoalmente o quanto eu as amo. Olhei para os porta-retratos espalhados pela casa. Me peguei escolhendo onde colocaria o porta-retrato com a foto que pretendia tirar naquele dia especial, com toda a família reunida. Aquele momento não poderia deixar de ser registrado.
Foram muitos beijos, muitos abraços, muitas risadas e também algumas lágrimas. Muitas fotos e promessas do que seria diferente dali para frente. Era como se a vida tivesse nos dado uma nova chance. E tinha.
Naquela tarde recebi minhas amigas. Quanta saudade! Nosso grupo costumava se reunir com frequência, mas havíamos deixado de nos encontrar no início da pandemia. Nos divertimos muito, colocando a conversa em dia. Mais uma vez foram muitos beijos, muitos abraços, muitas risadas. E as lágrimas também estiveram presentes…uma de nós não estaria mais conosco.
E para finalizar aquele dia, fiz um jantar romântico para o meu companheiro. Nos últimos tempos ficamos mais afastados do que gostaríamos. Havíamos decidido que seria melhor assim, para não colocar seus pais idosos em risco. Jantamos e nos sentamos na varanda, tomando vinho e apreciando a lua cheia e o céu estrelado. Ficamos horas fazendo planos para nossas próximas viagens. Planos para a nossa vida daquele dia em diante.
Naquela noite, quando me deitei na cama, pensei em quanto aquele dia havia sido especial. Um sentimento de gratidão e regozijo tomou conta de mim. Depois de tantos momentos de tristeza e desespero diante de notícias ruins, sofrimento e perdas, ela enfim havia sido dominada. A OMS havia decretado o fim da pandemia. Me perguntei que lições ela teria deixado para a humanidade. Será que conseguimos aprender? Será que saímos dela melhor do que entramos? Não sei. O tempo nos dirá. Mas o que eu sei é que a partir de agora, eu faria cada dia valer a pena. Aprendi a valorizar pequenas coisas e pequenos gestos, que antes passavam desapercebidos. E principalmente aprendi que cada dia deve ser vivido como um dia especial.
Autora: Maria Cristina Prado