Todo homem, antes de ser pai, é filho. E como tal, as primeiras referências e lembranças da tão importante relação filial são aquelas da infância. Experiências às vezes nebulosas, memórias muitas vezes coloridas pela imaginação da mente infantil – mas que sempre deixam aprendizados, inspirações e que reverberam no futuro – quando a vida coloca então o filho na outra nova posição de pai.

Um menino, seu pai e o tempo é o título de uma crônica de Luiz Fernando Cheres, escritor e aposentado da Caixa. De onde vem a inspiração para os versos que refletem o olhar de um filho sobre seu pai? A resposta, o autor parece deixar no ar. “Desconfio da inspiração. Meu método é a observação da vida, das pessoas, dos lugares. Minhas histórias são sempre ficcionais. Não importa se baseadas em algo que ocorreu comigo, ou algo que vi ou ouvi de outras pessoas”, relata o escritor.

Cheres afirma que todos seus textos são ficcionais, mas não há como não considerar o impulso autobiográfico em seus versos. Seja parte de sua própria história, ou de outras tantas com forma similar, a crônica remete justamente a tais imagens do passado, sob o olhar do filho, e às reflexões posteriores que nascem na perspectiva do homem, agora pai.

Qual a função maior da paternidade? O que de realmente importante cada pai ou avô pretende deixar a seus filhos e netos? Bens materiais, lembranças, experiências? Seja qual for a resposta, uma coisa é certa, no ponto de vista, especialmente daqueles que já são os pais de pais: “A vida é um trem, um ônibus veloz, e nossa viagem é curta, muito curta”.

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Um menino, seu pai e o tempo

Crônica: Luiz Fernando Cheres

– Lembre dessa rua… Rua Tibagi, por ela você segue da rodoviária ao centro e depois volta sem erro!

Sim, até hoje lembro, lembro da rua Tibagi, mas principalmente lembro dele me orientando sobre Curitiba. Eu era um moleque de calças curtas, éramos bem pobres, e o carteiro Aparício me levava pela primeira vez para Curitiba, de ônibus. Eu só tinha viajado de trem, a maioria das vezes para Teixeira Soares, terra dos avós maternos. De tal forma que cada detalhe do ônibus, os assentos macios e numerados, a velocidade, tudo me encantou. Para ficar perfeito, faltava a possibilidade insana de correr de vagão para vagão em pleno movimento sacolejante. E outras coisinhas: ônibus intermunicipal não tem vendedor de revistas, de lanche, nem o cidadão furando o bilhete de passagem da gente, ônibus nenhum balança tanto quanto o trem e principalmente não tem vagão emendado em outro vagão. O que não chegou a ser decepcionante.

Em Curitiba, fomos a pé pela rua Tibagi, desde a rodoviária até o Passeio Público, onde fiquei encantado, eu só conhecia a antiga Praça dos Bichos, aqui de Ponta Grossa. Dei pipoca para os macacos e para os pássaros coloridos, meu guia sabia muita coisa sobre passarinho. E até sobre as árvores do Passeio o danado me contava! Depois almoçamos em algum lugar, não sei mais dizer o nome, uma casinha bem no meio do aglomerado de prédios altos. Recordo que a comida veio em pequenas travessas, e ainda sinto o gosto do feijão, do arroz e do frango. Principalmente, ainda ouço a voz macia daquele homem pedindo ao garçom mais guaraná para o garoto. Ele bebericava sua cerveja, e o menino imaginava-se adulto também, adulto igual o pai, meu pai era tão inteligente, e o guaraná de repente virava cerveja, porque beber cerveja era coisa de homem e eu já era homem. Enfim, pela cor, guaraná e cerveja, era tudo parecido!

Depois fomos ao departamento público responsável pelos Correios, e lá as mãos paternas assinaram pilhas de papéis, eram mãos firmes, seguras, e pude ver como ele devia ser importante. Nem todo mundo assinava tanto papel!… Aí caminhamos até aquele escritório enorme, e o “seu Aparício” – desse jeito o trataram – parecia ser um sujeito famoso, pois foi recebido pelo homem alto e perfumado, de terno e gravata, que nos ofereceu café. O café estava horrível, contudo eu tinha certeza que não era para qualquer um que eles davam café, assim sem cobrar nada… Passamos pela loja colorida, de onde saímos com a encomenda pedida pela mãe. Na volta, fomos ao Mercado Municipal, e meu pai comprou umas frutas estranhas, diferentes de tudo que eu conhecia em Ponta Grossa.

– Tua mãe gosta muito disso, piá. Não importa o lugar, aconteça o que acontecer, nunca esqueça de tua mãe.

Não, pai, nunca esqueci. O “seu Aparício” parecia prever – uns 40 anos depois, o Parkinson o levaria, e à Dona Antônia restaria apenas os cuidados do filho único. Bem, essa já seria outra história…

A verdade é que, hoje, vi minha filha mais velha, já adulta, e fiquei pensando se consegui deixar para ela a lembrança bonita de algum dia de sua infância. E aí olho para os dois filhos menores, o menino e a menina, esses ainda são crianças, eu sei que é preciso urgentemente viajar mais, viajar de trem, de ônibus, levá-los a um departamento qualquer, ao Passeio Público, mostrar a eles o caminho seguro da rua Tibagi.

Porque a vida é um trem, um ônibus veloz, e nossa viagem é curta, muito curta.


Sobre o autor:
O escritor Luiz Fernando Cheres é natural de Ponta Grossa/PR, filho de Aparício Cheres e Antônia Ogarenko Cheres. Trabalhou na Caixa Econômica Federal no período de 1982 até 2017, quando aposentou-se. É Bacharel em Administração, Licenciado em Língua Portuguesa e Literatura da Língua Portuguesa, Bacharel em Direito e Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura.

Cheres é autor de espetáculos teatrais, crônicas, poemas e livros e recebeu dezenas de prêmios locais, estaduais e nacionais por suas obras. Hoje é membro fundador e atual Presidente da Academia de Letras dos Campos Gerais. No ano de 2010 publicou os livros Amar não é Preciso (poemas) e Um Beijo Longe dos Lábios (contos), pela PROEX UEPG